segunda-feira, 4 de julho de 2016

Palácio do Governador – Diálogo entre História e arquitetura

Em Lisboa não nasceu somente um novo hotel de cinco estrelas. O Hotel Palácio do Governador é mais do isso. É uma herança da nossa história. A história de todos os Portugueses.
Este edifício servia de residência ao governador da Torre de Belém. Terá sido mandado construir em 1519 por D. Gaspar de Paiva, o primeiro governador da Torre de Belém em terrenos aforados aos monges hieronimitas. Nem sempre foi clara a associação da casa à função de governador da Torre de Belém. No final do século XVII essa ligação mostra-se real com D. Luis Manoel de Távora (sexto conde de Atalaia), apesar de não estar ainda claro se terá sido residência de família somente ou residência-oficial dos governadores da Torre de Belém.
No entanto, a história deste local é ainda mais antiga e leva-nos ao período romano. Há uns 2000 anos, os romanos construíram aqui uma unidade de produção de garum, uma pasta fermenta de peixe feita com as vísceras de peixe, uma atividade económica fundamental na província da Lusitânia. Quando D. Gaspar Paiva mandou construir o seu palácio aproveitou as estruturas da fábrica de garum como alicerces do novo edifício.
Planta da fábrica de garum
De planta retangular, com uma área de 1 500 m2, os tanques para a fermentação do peixe (foram identificadas 32 cetárias, mas seriam muitas mais) foram construídos em torno de um pátio central. O acesso dos trabalhadores aos tanques era feito através de um corredor. No seu pico de produção poderia atingir os 550m3 e teria capacidade para encher mais de 15 mil ânforas, o equivalente a 5 navios romanos. A sua localização e dimensão fazem deste sítio um dos mais importantes de Portugal.
As ruínas das cetárias
O cheiro intenso e desagradável destas fábricas de garum levava à sua construção preferencial na periferia das cidades. Os preparados de peixe eram não só muito apreciados como fundamentais na dieta alimentar em especial dos contingentes militares espalhados pelo vasto Império Romano, graças à sua longa durabilidade, visto serem conservados em sal. Segundo os historiadores, o garum vindo da Lusitânia era dos melhores, pois o peixe da nossa costa era de alta qualidade.
Nas escavações para a construção do hotel foram encontradas diversas ânforas, recipientes de barro usados pelos Romanos para transporte de diversos produtos, como vinho, azeite ou garum. A maior parte das ânforas recolhidas terá sido produzida em olarias localizadas no estuário do rio Tejo – no entanto, as diferentes ânforas aqui descobertas mostram-nos também que por aqui passaram vinho e azeite provenientes da Península Itálica, da Bética e do Norte de África.

A arquitetura da fábrica de preparados de peixe
Esta fábrica de preparados de peixe era semelhante a outras do Império Romano: planta retangular com os tanques dispostos em torno de um pátio central aberto, separados por um corredor. Os tanques de maiores dimensões eram utilizados para a produção dos preparados piscícolas, enquanto os mais pequenos, localizados no corredor, seriam utilizados para armazenamento de alguns dos ingredientes principais. A zona de produção era coberta por uma cobertura de telhas, assente em traves de madeira, apoiadas em colunas de tijolo.
As paredes das cetárias (tanques) eram construídas com pedras trabalhadas de calcário e basalto, ligadas por uma argamassa de boa qualidade e posteriormente revestidas com opus signinum (uma mistura de argamassa e pedra calcária), que poderia chegar a ter três camadas, de modo a tornar os tanques impermeáveis. O mesmo material (opus signinum) era usado para os pavimentos, e assentavam num enrocamento de pedras de basalto.

O Palácio do Governador
Tudo indica então que no século XVI esta unidade de produção de preparados de peixe já não estivesse em atividade quando a Torre de Belém foi construída e daí terem sido aproveitados os muros para alicerces do futuro palácio do governador da Torre de Belém. O palácio terá sido usado até ao século XIX, existindo referências a oficiais em serviço na Torre, sendo a sua afetação à torre muito explícita. No entanto, desconhece-se a data em que os condes de Atalaia terão vendido o imóvel ao estado.
Quando nasceu a moda dos banhos na praia de Pedrouços, D. Maria II, D. Pedro e D. Luis terão usado a habitação como local de veraneio. Inicialmente a casa funcionava como residência de férias e o marquês deixou que a residência do escrivão da torre de belém e os escritórios dos oficiais de registo do porto continuassem a funcionar neste espaço, bem como armazéns.
D. Luís terá residido na casa já depois de rei, em 1862, antes de fixar residência oficial no Palácio da Ajuda. Após as mortes suspeitas de três dos seus irmãos, houve quem não considerasse adequado que o monarca permanecesse no Palácio das Necessidades, o que originou a sua ida para Pedrouços, ainda que em 1854 a casa tenha sido vendida pelo estado ao segundo marquês de Viana, D. João Manoel de Meneses, descendente de antigos governadores da Torre de Belém.
Em 1864, D. João Manoel de Meneses passou a viver definitivamente no palácio. Após a sua morte em 1890, a casa transitou para a sua viúva e herdeiros colaterais. Ao longo do século XX a casa foi sendo subalugada a diversos particulares (asilo, colégio feminino de invocação a Nossa Senhora do Carmo, fábrica de rolhas, leitaria marítima, oficina metalúrgica e outra de reparação de redes de pesca) e instituições estatais (Escola de Pesca de Lisboa, Caixa de Previdência e Abono da Família dos Profissionais da Pesca e Centro regional da Segurança Social de Lisboa).
O palácio foi adquirido pelo Grupo Nau que o transformou, após mais de uma década de trabalhos, num hotel de cinco estrelas. O projeto arquitetónico foi entregue à dupla Jorge Cruz Pinto e Cristina Mantas, tendo a decoração do interior ficado a cargo de Nini Andrade Silva. “A intervenção arquitetónica na antiga Casado Governador da Torre de Belém define o que entendemos por Projeto Sincrónico: a coexistência de diferentes espaços-tempos, através da recuperação e integração dos vários estratos históricos existentes no edifício (dos achados arqueológicos das cetárias romanas dos séc. 1 e III d.C., da fundação manuelina,  à caracterização do período barroco e à renovação arquitetónica contemporânea) ”, escrevem os arquitetos na brochura sobre o hotel.
O pátio de entrada do Palácio do Governador onde são bem visíveis as cetárias
A entrada faz-se pelo pátio onde permanecem as cetárias da antiga fábrica romana. O lobby da receção situa-se na antiga Capela, de invocação mariana, assinalada por uma cruz e duas estrelas, em alusão à Virgem como estrela da manhã, uma instalação feérica contemporânea formada por tubos de aço inox, evocativa de um órgão ou do feixe dos raios luminosos do Espírito Santo, conforme figura num dos painéis de azulejos e figurava no retábulo do altar desaparecido, ambos dedicados à Anunciação.

O valor histórico-arquitetónico genuíno revela-se em cada um dos cinco pisos do hotel: nos tetos em abóbada da sala de restaurante, nos arcos sucessivos das salas do piso térreo e nos lambris de azulejos nas salas e suites. Os terraços virados a sul oferecem aos hóspedes e visitantes uma esplanada privilegiada sobre a piscina exterior, a Torre de Belém e o Rio Tejo.
Procurou respeitar-se o traçado original do edifício. Nos salões, foram preservados os tetos de masseira, a sua azulejaria setecentista original, os fogões de sala barrocos, os arcos e abóbadas de tijolo originais das salas do piso do embasamento, o portal barroco dos fogaréis e as outras cantarias originais.
Quarto
O hotel alberga um programa de 60 quartos de diferentes tipologias arquitetónicas, integrando três suites principais, um restaurante de autor, Ânfora, situado no embasamento abobadado com terraços e esplanada ligada à piscina exterior. O jardim é dotado de um tanque desenhado ao longo de parte da fachada sul e de uma piscina central envolvida por um deck de madeira com escotilhas elevado num solário, cuja imagem reforça a evocação de memórias náuticas. Do interior um grande spa dotado de uma extensa piscina interior podem ver-se os muros romanos. O espaço com área de 1200 m2 inclui uma piscina de 25 m com 2 cascatas, duche de sensações (tempestade das Caraíbas), fonte de gelo, sauna, banho turco, três salas de massagens/tratamentos (uma de casal com jacuzzi privativo), duas salas de relaxamento e ginásio.