terça-feira, 9 de janeiro de 2024

Singapura também tem herança portuguesa

 

Igreja portuguesa de São José


Quando pensamos em Singapura, relacionamos sempre com a Grã-Bretanha. E temos razão. Singapura foi fundada como um posto comercial da Companhia Britânica das Índias Orientais por Sir Stamford Raffles em 1819 com a permissão do Sultanato de Johor. O Império Britânico obteve soberania completa da ilha em 1824. 

E, no entanto, os Portugueses estiveram lá antes. Quando os portugueses tomaram o controlo de Malaca em 1511, o Sultão de Malaca fugiu para sul e fundou o Sultanato de Johor, que incluía a ilha do que é hoje Singapura. Há registos de uma batalha naval entre navios portugueses e holandeses ao largo da costa de Singapura, em outubro de 1603, que os portugueses perderam. Em 1613, os portugueses destruíram a colónia malaia da ilha e o local ficou praticamente esquecido até à chegada de Sir Stamford Raffles em 1819.

Os Portugueses mantiveram, porém, um “pezinho” na ilha, através da religião. Em 1821, já existia uma pequena comunidade católica que incluía malaios de ascendência portuguesa. A sua ação era exercida por sacerdotes da Diocese de Malaca, criada em 1558, que sobreviveu à tomada de Malaca pelos holandeses protestantes aos portugueses em 1641. Por sua vez, a Diocese de Malaca era apoiada pela Arquidiocese de Goa e pela Diocese de Macau, áreas que os portugueses continuavam a controlar.

Em 1825, o P. Francisco da Silva Pinto e Maia, natural do Porto, mas em missão em Macau, aonde tinha chegado 12 anos antes, foi para Singapura e aí fundou a Missão Portuguesa. No enanto, a ação católica francesa também estava ativa no Sudeste Asiático, nomeadamente no Sião (atual Tailândia), Vietname, Laos e Camboja. Em 1831, o Vigário Apostólico do Sião, francês, reivindicou a jurisdição espiritual sobre Singapura, o que deu origem a uma disputa entre os ramos português e francês da Igreja Católica que se prolongou por vários papas. Finalmente, em 1886, a dupla jurisdição sobre Singapura foi clarificada por uma Concordata entre o Papa Leão XII e o rei português Dom Luís I, estipulando que "Todos os católicos de Malaca e Singapura, que estão sob a jurisdição de Goa, passariam para a jurisdição de Macau".




Curiosamente, a primeira igreja estabelecida em Singapura foi uma colaboração entre as missões portuguesa e francesa. Tratava-se de uma capela inaugurada em 1833 na Bras Basah Road, num terreno que viria a ser o local da escola masculina St. Joseph's Institution que os frades franceses De La Salle fundaram mais tarde, em 1852.

A Missão Portuguesa, sob a direção do Padre Vicente de Santa Catarina, obteve apoio britânico para construir uma igreja a algumas centenas de metros de distância, tendo a Igreja de S. José sido inaugurada em 1853. A pedra fundamental, lançada em dezembro de 1851, faz referência ao "25º ano do reinado de Dona Maria II - Rainha de Portugal" e ao "14º ano do reinado de Sua Majestade Britânica, a Rainha Vitória".

Com o crescimento da população de Singapura, a Igreja de S. José tornou-se demasiado pequena para a congregação e foi demolida em 1906, tendo sido construída no mesmo local uma igreja maior, em estilo manuelino (gótico tardio português), que foi consagrada em 30 de junho de 1912 pelo Bispo de Macau, D. João Paulino d'Azevedo e Castro.

Com a independência de Singapura em 1965 e a separação, em 1972, da Arquidiocese de Singapura da antiga Arquidiocese de Malaca – Singapura, terminou a dupla jurisdição com a assinatura dum acordo, em 1981, entre o Arcebispo de Singapura Gregory Yong e o Bispo de Macau Arquimínio Rodrigues da Costa para a transferência da Paróquia de São José para a Arquidiocese de Singapura. Para manter o carácter português da Igreja, a Diocese de Macau continuou a enviar sacerdotes para a Igreja de S. José até 31 de dezembro de 1999. Nessa altura, o Padre Benito de Sousa reformou-se e, simbolicamente, terminou a Missão Portuguesa em Singapura.

Capela dedicada a Nossa Senhora de Fátima


Mas a nossa herança em Singapura não se resume à igreja de São José. Há muitas palavras malaias de origem portuguesa e, eventualmente, um doce, a serikaya ou somente kaya.

Comecemos pelo doce. Há várias teorias sobre a origem deste doce malaio, feito à base de ovos e leite de coco. Há quem diga que tem origem no bolo alentejano sericaia. Será?

Alguns investigadores afirmam que este doce euro-asiático, que só existe em Singapura e na Malásia, foi originalmente adaptado de um doce de ovos português. Nesta adaptação, o leite de coco e as folhas de pandan foram utilizados em vez do leite e das vagens de baunilha, respetivamente. Outra fonte especula que a kaya se baseia na sobremesa portuguesa, a sericaia, que é feita de ovos, açúcar, leite e canela e tem um sabor semelhante. Só que… a sericaia é um bolo que vai a cozer ao forno e a serikayai é um doce de colher, ou melhor doce de barrar pão.

Outras fontes atribuem aos primeiros imigrantes de Hainan o desenvolvimento da kaya. Quando estes chegaram a Singapura no século XIX, muitos deles trabalharam como cozinheiros a bordo de navios britânicos, em casas de britânicos ou em hotéis geridos por europeus. Com o tempo, muitos destes imigrantes hainaneses começaram a estabelecer os seus próprios negócios, vendendo comida em cafés. Com base na sua experiência de trabalho para os europeus, adaptaram as suas compotas tradicionais de fruta ao sabor ocidental, criando a kaya para barrar as torradas.

Há também fontes que atribui às nonya (mulheres chinesas do Estreito ou de Peranakan) a transmissão o fabrico da kaya aos cozinheiros de Hainan que trabalhavam para famílias chinesas ricas do Estreito.

Mas também pode ser que tudo se tenha passado ao contrário, que tivesse sido o doce kaya a dar origem à nossa sericaia. Segundo se pode ler no portal da Direção Geral de Agricultura e Desenvolvimento, a receita da sericaia terá chegado a Portugal pela mão de D. Constantino de Bragança, vice-rei da Índia entre 1558 e 1561. Este doce era tradicionalmente levado ao forno em pratos de estanho, que ainda se encontram nas velhas casas senhoriais. Também o Khir Johari, político e antiga Ministro da Educação malaio, argumenta que a sericaia portuguesa ter-se-á inspirado na serikaya malaia, uma vez que a serikaya já era provavelmente um alimento básico nas casas reais malaias quando os portugueses contactaram pela primeira vez com o mundo malaio no século XVI.