quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

PELO CAMBOJA

Quando começámos a planear a nossa viagem pela Indochina, que iria incluir o Vietname e o Camboja, o meu filho perguntou-nos se tínhamos algo prazer especial em visitar países que tinham estado em guerra com os EUA. Muitos dos nossos amigos disseram-nos que éramos loucos em querer fazer todo o percurso por terra, utilizando transportes públicos. Seria assim tão louco embrenharmo-nos num país saído há tão pouco tempo duma sangrenta guerra civil?

Estávamos no Vietname. Camboja está a poucas horas de Saigão. Podíamos ir de avião, uma hipótese que pusemos logo de lado, de barco, descendo o rio Mekong, ou de camioneta. Decidimo-nos pela última alternativa. Tínhamos lido vários relatos de turistas que tinham feito essa viagem e nenhum nos assustou. Na realidade, a viagem correu docemente e muito melhor do que pensáramos – o único problema é o tamanho dos assentos para pessoas que sejam duma estatura um pouco maior do que a média cambojana…
A viagem por terra valeu a pena. A paisagem, se bem que pouco variada, é lindíssima e nada monótona: arrozais muito verdes, búfalos, arrozais, búfalos, arrozais, búfalos, arrozais, aqui e além uma aldeia. Palmeiras ladeiam a estrada – e dão alimento precioso às populações. Onde há arrozais, há água. A água é o espelho natural e assim o céu continua pela terra adentro. Tudo se espelha naquelas superfícies húmidas a perder de vista: o sol, as nuvens, as palmeiras, os búfalos, os templos, as casas. Apesar de estarmos a viajar numa estrada internacional, que ligava Saigão a Phnom Penh, capital do Camboja, partes da mesma são de estrada de terra batida com grandes buracos que o condutor conhece como as rugas das suas mãos. Nestes troços abranda, vamos mesmo devagar, devagarinho, quase parados. mas curiosamente chegamos à hora prevista. Tudo está sob controlo! As casas são como caixas de vidro – podemos ver tudo o que lá se passa. São casas modestas de madeira, construídas sobre estacas por causa das águas dos arrozais. As pessoas fazem o seu dia-a-dia no único compartimento que a casa tem: cozinham, lavam, embalam os bebes. As crianças, essas, vivem no paraíso, com imenso espaço para brincarem: os arrozais são locais de brincadeira perfeitos, agora que já não têm minas, e os búfalos bons companheiros de brincadeira.
Chegámos a Phnom Penh ainda não era noite, mas já estava tudo escuro. A camioneta a parar e à volta só se viam tuk-tuks e muitos homens todos a gritar, tentando angariar clientes. Os tuk-tuks são motos de três rodas (triciclos) com caixa aberta, onde seguem os passageiros. Entrámos um pouco assustados para o escritório do Mekong Express, a rodoviária que nos tinha trazido e perguntámos onde havia táxis. “Táxis? Não há táxis aqui. Só tuk-tuks!”. Assim, confiantes de que em Roma há quer ser romano, lá fomos de tuk-tuk até ao nosso hotel. As ruas praticamente não têm iluminação, à excepção das avenidas principais. O nosso hotel ficava numa rua paralela à avenida principal, ou seja, sem luz. Munimo-nos das nossas lanternas, saímos do hotel e fomos procurar um restaurante para jantar. Encontrámos um fenomenal, com comida e decoração típicas khmer: as mesas eram baixas e em vez de cadeiras, sentámo-nos no chão sobre almofadas, com almofadas triangulares a servirem de apoio às costas. Comemos luxuosamente por pouquíssimo dinheiro. País a sair da guerra O Camboja viveu várias dezenas de anos em guerra: com os americanos, com os vizinhos, cambojanos contra cambojanos. Um guerra civil de que Pol Pot é o expoente máximo da maldade, da falta de humanidade, da manipulação, dos massacres. A capital foi esvaziada dos seus habitantes – não havia excepções até os hospitais tinham de enviar os doentes para o campo –, puseram-se filhos contra pais, pais contra filhos, mataram-se milhões, transformaram-se crianças em soldados. Calcula-se que tenham sido mortas 3 milhões de pessoas entre 1975 e 1979! O horror da guerra que deixou um povo sofredor. No final do século XX, o Camboja começa a respirar com um regime de governo estabelecido numa Monarquia Parlamentarista, sob a égide do então rei Norodom Suihanouk; em 2000, começam os julgamentos, apoiados pela ONU, dos líderes dos Khmer Vermelhos por crimes contra a humanidade. Aos poucos, os cambojanos estão a libertar-se do estigma da guerra e a tentar viver as suas vidas em paz, esperando pelo ano de 2010, quando termina a praga enviada pelo Buda, como nos disse o nosso condutor de táxi.

Phnom Penh, a capital 
Em 1372, quando foi criada Phnom Penh, a actual capital do Reino do Camboja, não era mais do que um pedaço de terra inundada onde vivia, como nos diz a lenda, uma mulher muito rica que se chamava Yeay Penh ou Daun Penh (Daun ou Yeay significam Avó). A cidade está situada na confluência de três rios (o Mekong, o Tonlé Sap e o Bassac), formando quatro braços precisamente em frente do Palácio Real. Phnom Penh é o centro comercial, político e cultural do reino ; é também a porta de entrada para uma terra exótica que engloba uma das maiores heranças culturais mundiais: o maior complexo religioso do mundo, os templos de Angkor. No dia seguinte à nossa chegada, fomos a pé até ao Palácio Real (Preah Barom Reachea Vaeng Chaktomuk), que é verdadeiramente sumptuoso e riquíssimo em nada comparável com o estilo de vida que se tem fora de muros…Jardins muito bem tratados, arruamentos perfeitamente limpos, paredes e telhados cobertos a folha de ouro… Um luxo num país paupérrimo!
Construído em 1866, como residência do rei, da sua família e hóspedes dignitários estrangeiros, tem servido como centro de cerimónias e rituais da corte cambojana. Ainda hoje, vive aqui a família real, numa parte reservada, não aberta aos turistas. O complexo do palácio e do Pagode Prateado incluem várias estruturas e jardins, todos localizados numa área totalmente murada de 400.000 m². O pagode Prateado está separado do palácio Real por um caminho murado, dentro do complexo de construções reais; o seu nome é uma alusão aos 5.000 ladrilhos de prata que cobrem o chão do pagode. Como todos os templos budistas, o complexo inclui outras construções. É a este pagode que o rei vem orar e ouvir os sermões dos monges. Perto do Palácio Real temos ainda o Museu Nacional que é digno de visita. Foi construído em 1920 e dedicado ao rei Sisowath. O seu acervo engloba mais de 5.000 objectos, incluindo estátuas angkorianas e a lendária estátua do Rei Leper.


Siam Reap
À tarde, fomos de camioneta para Siam Reap. A viagem voltou a ser paralela a arrozais, permitindo-vos ver um pouco mais da vida quotidiana no Camboja. Arrozais, búfalos, arrozais, búfalos, arrozais, … Ao final do dia, chegámos a Siam Reap. No dia seguinte, fomos então fazer o chamado petit circuit, ou seja, visitar os templos principais.
Apesar de Angkor Wat ser o mais importante e o mais rico do ponto de vista tanto histórico como da história de arte, do que mais gostámos foi do templo de Ta Prohm que, felizmente, os arqueólogos deixaram em parte como encontraram: silencioso e guardador de mistérios, com as sequóias (tetramelis nudiflora), milenares, donas e senhoras do local, a entrar dentro das pedras. Um espectáculo digno de se ver: pedras e raízes numa comunhão profunda. Impressionante é também o Bayon, com as suas mais de 200 caras esculpidas na pedra a olhar para nós com um sorriso nos lábios… 36 reis governaram a região a partir de Angkor entre os anos de 802 e 1432. E mandaram construir mais de 50 complexos de templos para assim consolidar o seu poder terreno e renovar a harmonia com o cosmos. Os primeiros eram budistas, depois vieram os que praticavam o hinduísmo e depois voltaram os budistas. Budas eram esculpidos, depois retirados para mais tarde voltarem a ser esculpidos. Os reis mais visionários adaptaram algumas estátuas de Buda, mandando esculpir o terceiro olho hindu.
Já nada resta das antigas cidades khmers. Os edifícios mundanos, incluindo os palácios reais eram feitos de materiais perecíveis como o bambu ou a madeira. Mas os edifícios sagrados eram construídos de pedra, porque o poder dos deuses é eterno. E é assim que ainda hoje temos alguns vestígios dessa civilização fascinante.
A história dos povos—a real e a lendária—foi esculpida nas paredes das galerias. Os séculos XI e XII foram os mais prósperos para o reinado dos khmers. As fronteiras do reino estavam bem definidas, o povo bem fornecido graças ao sistema de distribuição de água que permitia colheitas férteis. Porque é que Angkor Wat foi abandonado? Nunca se sabe ao certo o que leva ao desaparecimento destas grandes civilizações. Atingem o máximo e depois desaparecem. Deixam-nos como legado a certeza de que tudo na terra é temporário.


Informações úteis
Como chegar? Não há ligação directa de Portugal para o Camboja. A viagem é longa. Primeiro apanha-se um avião para uma outra cidade europeia, daí para Banguecoque e finalmente para Phnom Penh. A ligação de camioneta para Siam reap ou Shianoukville é feita pelo Mekong Express, por somente 10 dólares americanos, que incluem uma sandes, água e um bolo! Documentos exigidos: Passaporte com uma validade superior a seis meses e visto tirado à entrada do país.

Onde ficar? Em Phnom Penh: Goldiana, perto da enorme Praça da Independência, ou o Sunway Hotel. Em Siam Reap: Apsara Angkor Hotel, construído em estilos khmer e colonial.

O que comer? A base da cozinha cambojana é o arroz. Os pratos se preparam misturando especiarias doces e salgados e o indispensável Tuk-trey, um molho feito com óleo de peixe fermentado e temperado com muitas especiarias. Pratos típicos são o Prahoc, elaborado a base de uma pasta de cor rosado fermentada e salgada, com um sabor muito picante, o Machhra Troeungou (sopa de carne) e o Tea Tim (guisado de pato). Para os mais corajosos, há também baratas e gafanhotos fritos.